A vida é feita de altos e baixos. De vez
em quando, andamos por estradas tranquilas, onde as coisas fluem, dão certo, se
encaixam quase que perfeitamente. Tudo anda bem. De vez em quando também
experimentamos o outro lado: obstáculos grandes e pequenos, contratempos,
decepções, perdas, sofrimentos. Nem tudo anda tão bem e tranquilo como antes. Parece que tem horas em que os altos e
baixos são mais frequentes e não é fácil manter a inteireza, a paz interior e o
brilho no olhar. Somos submetidos a testes frequentes que sacodem as
convicções. Recordo-me que, nos tempos da infância e
adolescência, ao chegar ao final do ano, organizávamos uma pequena reforma da
casa. Era hora de arrumar as caixas, os armários, desfazer de algumas coisas,
pintar as paredes, etc. E, quando tudo estava arrumado, aí se fazia a árvore de
natal. Tudo era muito simbólico, pois era preciso preparar o ambiente, interno
e externo. A liturgia católica, como preparação
para o Natal, celebra o tempo do Advento. O advento é um momento especial quando
as pessoas se deixam (ou deveriam!) envolver por um espírito de confrontação
das experiências da vida com as propostas das mensagens bíblicas. Por exemplo,
fala-se em novos tempos, novas relações, novos modos de convivência, novas
atitudes. Uma lembrança sobre o sentido da vida e da existência. Tais mensagens
oferecem alguns bons e saudáveis filtros para checar a vida no seu emaranhado
complexo. Um dos convites extraordinários e que
nos colocam em estado de alerta é “preparai, aplainai os caminhos do Senhor”. A
vinda do Messias, o Salvador é tão significativa, que é preciso preparar sua
passagem, endireitar as estradas, aplainar os caminhos, organizar o ambiente.
Uma provocação para organizar a vida em suas diversas dimensões, que começa no
coração de cada ser humano e aparece em atitudes e gestos. Olhando ao nosso
redor, há muita coisa a preparar e a cuidar… Necessário se faz aplainar os caminhos
da nossa convivência. Tem sido cada vez mais desafiador o exercício do estar
juntos. O egoísmo tem prevalecido e deixado as relações mais complicadas. A
dimensão da alteridade (= levar o outro em conta, em consideração) se dilui em
meio a tantas demonstrações de desprezo, do jeitinho pervertido de levar
vantagem em todo e sobre todos, na insensibilidade no trato com o mundo do
outro, apenas para citar alguns. Com frequência vemos pessoas desrespeitando os
demais, para garantir sua parte, seu ganho, sua vantagem. Os exemplos são
muitos: gente estacionando nas vagas reservadas às pessoas com deficiência,
motoristas ultrapassando pelo acostamento ou na contramão, pessoas furando
fila, idosos sendo maltratados e desprezados, crianças violentadas, alunos
brigando dentro da sala de aula, pessoas matando por qualquer motivo… Aplainar
os caminhos significa levar o outro em conta, respeitar seu espaço, imaginar-se
em seu lugar, tornar leve seu peso, acolher o diferente. Urge aplainar os caminhos da política,
especialmente em nosso país, contaminada por interesses desviantes, pela
corrupção, inversão de valores e descaso. Enquanto isso, milhões de pessoas
pagam o preço da irresponsabilidade de homens e mulheres inescrupulosos,
sofrendo com falta de recursos na saúde, na segurança, na educação, que
garantiriam o bem-estar. Aplainar os caminhos é promover a justiça, punir o
erro, escolher melhor os representantes, assumir a responsabilidade pela polis (a cidade), onde a vida acontece,
acompanhando, se mobilizando por causas que valham a pena. É fundamental aplainar os caminhos do
cuidado com o planeta. Dia após dia surgem novos desafios para manter as
condições de vida no presente e viabilizá-la no futuro. O cuidado começa no
plano individual e se enraíza no coletivo. Aplainar o caminho é desenvolver um
espírito de reverência e respeito com todas as criaturas. Por fim, é imprescindível cuidar de si
mesmo. Ninguém dá aquilo que não tem. O mundo externo é reflexo do mundo que
desenvolvemos internamente. Só cuida bem dos demais quem nutre um cuidado de
si, a partir do conhecimento e reconhecimento de limites e dons, pecado e
graça, luzes e trevas próprios do ser humano. Toda mudança do entorno –
planeta, política, relações, religião – nasce primeiro dentro da alma. Como
dizia Rubem Alves, “ninguém planta jardins por fora se não possui jardins por
dentro”. Aplainar os caminhos, nesse caso, é
cultivar a inteireza, a espiritualidade que alimenta os sonhos e dá sentido à
vida, num permanente exercício de humildade. Neste tempo de Natal, de pequenas e
grandes esperanças renovadas, vale o esforço de abrir-se à comunhão consigo,
com os demais, com o universo e, nisso tudo, contemplar os sinais de Deus, que
se deixa encontrar na mistura de finito e infinito. Aplainar os caminhos,
portanto, é todo esforço de cultivo de leveza, ternura, simplicidade,
delicadeza no trato, profundidade nas experiências e de cuidado com tudo e com
todos. Ao aplainar os caminhos para a manifestação de Deus em nosso coração,
tornamos belo e agradável os caminhos que nós mesmos trilhamos…
Para refletir:
§
O que preciso “aplainar” na minha vida
atualmente? (algum mal-entendido, uma dívida, um agradecimento, um gesto de
perdão, um reconhecimento, etc.).
§ O que posso fazer para tornar a vida mais interessante para os que vivem comigo ou ao meu redor?
§ O que posso fazer para tornar a vida mais interessante para os que vivem comigo ou ao meu redor?
Vanderlei Soela
FONTE: www.essentia.org.br
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